junho 15, 2010

Criatura divina.



Enquanto deliciava-se de algo semelhante a um pedaço qualquer de carne crua, encostado na quina do encontro entre duas paredes, com suas pernas bem encolhidas - como todo o corpo, deixava que o vento gelado do dia nublado movimentasse seus fios negros de cabelo. Aproximei-me agarrada nas mangas de minha blusa pouco fina.
- Será que eu posso?
Ele deu de ombros.
Deixei meu corpo cair no concreto pintado de cor branca e, de costas, escorreguei o corpo para o chão, ajeitando-me aos poucos ao lado daquele ser. Sua aparência perfeitamente assimétrica tinha total controle sobre meus olhos; era nada comum, diferente de tudo o que eu já havia visto. Repulsivo. Encantador! A paz que dava de apenas fitar aquelas imperfeições me trouxe dúvidas aparentemente sem respostas. Separei meus lábios, cheguei a pegar fôlego para bombardeá-lo com todas as minhas questões, mas logo juntei-os novamente envergonhada.
- Como ousa?
- Perdão?
- Não tem medo de mim?
- Por que o teria?
- Olhe bem! -Agarrou-se ao pedaço de carne crua como se estivesse aquecendo uma criança nua.
- Não entendi.
- Eu posso te fazer feliz. Eu posso te destruir, fazê-la erguer novamente. Sou capaz de te fazer guerrear consigo mesma, tenho o dom de trazer paz nos momentos mais absurdos. Sou poderoso, criança. Comigo você não vai conseguir fechar os olhos para dormir com medo de eu te deixar, ou até mesmo por que estará fazendo orações para que eu vá embora. Nunca mais terá tanta racionalidade, tomarei conta de tudo, comandarei cada passo e pensamento seu. Suas risadas serão somente as mais sinceras ao meu lado, e suas lágrimas se tornarão cada vez mais presentes por tudo o que trarei comigo. Sou um pacote!!
Seu tom baixo, sua voz inacreditavelmente doce chegava aos meus ouvidos como uma verdadeira e bem feita canção de ninar. Cerrei meus olhos, deixei que, como ele havia feito, o vento movimentasse meus fios de cabelo. Meus lábios sorriram sem o meu comando, senti meu coração palpitar silenciosamente no ritmo da tranqüilidade que acabava de se acomodar.
Saí do meu estado de êxtase. Voltei a fitá-lo com desejo. Encantou-me completamente. Segurou o pouco que restava de seu alimento com a mão mais distante de mim, e com a outra fez pressão sobre meu peito; sobre meu coração.
- É disso que eu me alimento!
- Tudo bem.
- Ainda assim não tem medo?
- Eu preciso da sua presença na minha vida. Preciso dessa insanidade. Minha vida só terá sentido quando não tiver sentido algum pela minha luta.
- Mas muito provavelmente irei feri-la.
- Você está pedindo licença para entrar na minha vida?
- Não! Nunca faço isso. Eu já sei que já estou no controle.
Senti um breve calafrio levantar meus pêlos cobertos pelo tecido grosso de minha blusa enquanto ele afastava sua mão do meu corpo.
- Posso ao menos saber o seu nome?
- Amor. Este é o meu nome: Amor!